Reportagem especial 4 – Primeira gestão do Sindicato dos Médicos, com Neilton Araújo, enfrentou demissão em massa de profissionais

Resistência da entidade contra demissão de médicos de Porto Nacional marcou primeiras medidas do SIMED-TO no primeiro ano do Tocantins
22/03/2024 01/04/2024 15:57 129 visualizações

O médico e sindicalista que arrastava multidões no primeiro ano de existência do Tocantins e se tornou crucial para a fundação do Sindicato dos Médicos é Neilton Araújo de Oliveira. Segundo nome da lista de fundação ele se tornou o primeiro presidente eleito do SIMED-TO. Mais tarde, daria nome ao auditório da sede da entidade na capital e é o personagem da quarta reportagem sobre os 35 anos de criação do Sindicato dos Médicos no Estado do Tocantins. A série relembra a fundação no dia 18 de março de 1989.

Filho de pai baiano e mãe italiana, Neilton Araújo estava com 11 anos quando os pais se mudaram para Goiânia, deixando para trás o sertão abaixo de Goiás Velho, na região de Itapuranga. 

O sonho de "pequenininho" de estudar Medicina - como ele mesmo fala - ganhou contornos acadêmicos em 1970, ano de seu ingresso na Universidade Federal de Goiás, aos 19 anos, uma década após a criação da escola.

O pioneiro conta que a inspiração para a área veio do médico sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz e pelos livros do escritor e médico escocês, Archibald Joseph Cronin, que leu por empréstimo nas bibliotecas do Sesc.

A medicina que o impulsionava era integral e comunitária. "Eu pensava, e até hoje penso na Medicina, na importância do conhecimento e da relação que o médico tem na sua comunidade. Por isso que eu desde cedo optei por fazer uma medicina inteira. Uma medicina integral. Eu me preparei desde o segundo ano da faculdade, me preparei pra ir pro interior".

Desde jovem, Neilton Araújo integrou movimentos sociais junto à igreja e à comunidade. Depois, na faculdade, se envolveu com o movimento estudantil e com o esporte, adepto do futebol. Ele conta que desde o segundo ano buscou acompanhar os profissionais do pronto-socorro noturno do Hospital Oswaldo Cruz em busca de aperfeiçoar sua formação.

No sexo ano do curso, conheceu Porto Nacional durante seu internato rural. "Abril de [19]75 eu vim fazer o internato rural. Ficava um mês. Aí a minha turma, quando deu 75% de frequência, a minha turma foi embora. Mas eu gostei tanto do trabalho de Porto Nacional que eu fiquei o restante. E ainda matei os 25% que eu podia matar do estágio seguinte pra ficar em Porto Nacional. Gostei muito do trabalho que era feito porque tinha uma vinculação muito forte com a comunidade. Era um trabalho de medicina integral".

A passagem por Porto o levou a desistir do convite para ir trabalhar na prelazia de São Félix, em Mato Grosso, na Vila Operária com Dom Pedro Casaldáliga, que "tinha um trabalho muito forte com os índios, com os lavradores, com os trabalhadores rurais, com os ribeirinhos, sempre defendendo os mais humildes".

Neilton Araújo chegou em Porto Nacional de mudança após passagem pela Marinha, no Hospital Naval, em Brasília, e de ter preterido propostas para atuar em uma clínica infantil de Campinas, criado por colegas médicos em Goiás, e na medicina tropical de Goiânia. 

Era dia 4 de abril de 1977 quando o ônibus da Transbrasiliana chegou às margens do Rio Tocantins, em Porto Nacional, relembra. Neilton  chegava com uma mala com as roupas e duas caixas de papelão cheias de livros, para morar no Hotel São Judas Tadeu, que era perto do hospital da Osego. Em plena enchente, a famosa cheia de 1977. A cidade estava sob calamidade pública, decretada pelo então prefeito Jurimar Macedo.

"No dia que eu cheguei, tava tendo uma enchente e não tinha ponte. Era balsa nesse tempo. E a balsa não atravessava porque o rio transbordou e tinha mais dois, como se fosse mais dois rios, eram três rios que a gente tinha que atravessar. Um deles era só canoa de remo porque era rasinha a água. Então eu a canoa de remo, depois peguei uma voadeira, depois peguei outra voadeira pra poder chegar".

Em Porto, a residência de medicina geral ganhou reforço de equipe multidisciplinar com estudantes em estágio de nutrição, de enfermagem e de comunicação, uma metodologia que inspirou a faculdade a fazer o mesmo trabalho de medicina social no Jardim Novo Mundo. 

Uma prática que continha conselho de saúde, agente de saúde - que se chamava visitador domiciliar - que se tornou célula experimental aplicada em outros localidades, como Montes Claros em Minas Gerais, Caruaru, no Nordeste. 

"Eram trabalhos que foram células experimentais do que depois a gente juntou a 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1988, no processo institucional constituinte pra criar o SUS. O SUS foi criado em cima do que a gente chamou de Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Esse Movimento da Reforma Sanitária Brasileira foi um momento de articulação e de construção da saúde como direito, da saúde como integralidade, da vida, da saúde como condições econômicas sociais articuladas, saúde como derivado das condições de trabalho, de alimentação, de segurança, de moradia, saneamento básico."

Para Neilton, foram vivências que reforçaram sua visão de que é preciso estar sempre articulado. "O que que é a família? Articulação. Né? O que que é a sociedade? É articulação. A família é articulação de pessoas. A sociedade é uma articulação de grupos. Articulação de famílias. Então essa visão de coletivo foi muito forte na minha vida. Acho que, inclusive pela influência cristã. De você pregar a comunidade, pregar à união da comunidade, pregar o apoio da promoção do outro".

O casal Eduardo e a Heloisa estava de férias em São Paulo. Neilton se juntou a outro casal de médicos do local, Merval e a Célia Amorim, também fundadores do Sindicato. 

Esta passagem por Porto Nacional durou até março de 1979. Um ex-professor da faculdade, Sydney Smith, ligado à medicina tropical, assumiu a superintendência da Osego e o convidou para ser diretor técnico do órgão, com o desafio de replicar no restante do Estado a experiência de Porto Nacional.

Dessa passagem pela diretoria técnica do órgão máximo de saúde goiana, Neilton viu surgir o movimento de Renovação Médica, o Reme, no Rio de Janeiro e que contava com colegas de faculdade que fizeram residência médica naquele estado e voltaram para Goiás.

O movimento inspirou o Mime - Movimento de Inovação Médica-, um pouco copiando a experiência do Rio de Janeiro de onde resultou na base do sindicalismo médico goiano. "Com o Mime nós propusemos criar o Sindicato dos Médicos de Goiás em 1980".

Naquele ano, foi obtida a Carta Sindical e convocadas as primeiras eleições do Sindicato dos Médicos no Estado de Goiás (SIMEGO).

"Quando a gente fez isso, os médicos mais tradicionais, donos de hospitais, fizeram movimento pra criar um sindicato dos médicos ligado a eles. Então a gente teve duas chapas na primeira eleição do Sindicato dos Médicos de Goiás. Uma ligada ao movimento social e outra ligada aos patrões. 

O próprio Neilton Araújo se encarregou de garantir os votos do norte. 

Naquela eleição se podia votar por correio e presencialmente. Se os portuenses enviassem pelo correio, havia o risco de não chegar a tempo. Neilton coletou os votos dos colegas e se dirigiu aos correios. Depois dos selos para remessa, fez uma proposta inusitada. 

"Eu falei com o correio: o senhor me autoriza, eu pegar e entregar esse envelope lá no correio de Goiânia. Eles autorizaram. Eu peguei o envelope, peguei meu carrinho e ó, pra Goiânia. Cheguei lá, entreguei no correio, expliquei pro pessoal: ó, se vocês quiserem eu dou carona pro carteiro...".  

Com os votos do norte entregues em mãos e computados, os sindicalistas elegeram como presidente Nelcivone Soares de Melo para um mandato de 1981 a 1984. Melo era um dos médicos fundadores do movimento Mime. "Então, nessa disputa, nós ganhamos por 6 votos de diferença. E aí eu falei pra turma: esses 6 votos são os 6 votos de Porto Nacional", conta Neilton Araújo.

Nove anos depois, nova articulação pelo sindicato no mais novo estado, depois de seu regresso após a experiência como diretor da Osego, de onde acabou demitido por seu papel representativo em uma greve dos servidores goianos. 

"O governo foi negociando, negociando e até que depois de uns três, quatro meses e decidiu: - olha eu readmito todo mundo, com exceção do Dr. Neilton. Eu fiquei dois anos demitido da Osego, fiquei na Justiça", relembra. Ganharia a causa apenas em 2009 junto com outros servidores demitidos.

 

Volta para Porto Nacional e o início do movimento médico no Tocantins

 

Em meio à crise instalada, recebeu convites de colegas de outros estados, mas optou por Porto Nacional. "O pessoal do Porto me falou, Neilton, se você não voltar pra cá, nós vamos ficar muito desfalcados. Aí eu vim pra cá com a minha mulher e o menino, estava com um menino de dois meses. E eu fiquei aqui dois anos trabalhando com a comunidade e recebendo uma bolsa de três salários mínimos. Foi dura essa época".

No retorno, o médico e sindicalista vivenciou novamente o trabalho comunitário. O país experimentava uma abertura democrática com a criação de partidos políticos. Neilton conta ter sido influenciado por uma lavradora, por nome dona Tereza, que tinha se mudado para Porto Nacional e o fez mudar de ideia sobre a participação em partidos políticos. 

"Ela plantava folha, alface, vendia nas feiras e era uma líder comunitária forte demais. Aí a Dona Tereza falou, Doutor Neilton, vocês ficam falando que não quer mexer com política, porque política é só sacanagem, bandidagem, desonesto, etecetera e tal, mas vocês que estão junto com a gente, tão trabalhando com nós, que é do nosso lado, que tem um trabalho decente, que é honesto, vocês não entrando na política, na hora a gente vai ter só os bandidos pra poder votar". 

Segundo Neilton Araújo, a frase da Dona Tereza o fez mudar de opinião. "Falei, não, nós temos que participar de partido mesmo. E participei, não fui candidato, porque a minha ideia de política, de partido não era de eleição, pra ser candidato, era de organização da sociedade". Sua atuação se deu na fundação do Partido dos Trabalhadores, o PT. Acabou por se desfiliaria anos mais tarde, após ter sido candidato ao governo do Tocantins pelo partido nos anos iniciais do Estado.

Durante sua atuação em Porto Nacional, Neilton Araújo lembra que no dia 10 de janeiro de 1989, o primeiro ano oficial do Estado, houve uma primeira reunião para tratar das entidades médicas, em Miracema, capital provisória. 

Neilton Araújo convenceu o primeiro presidente do Sindicato dos Médicos de Goiás, Nelcivone Melo, de quem era amigo, o Dr Daniel, da Associação Médica de Goiás (AMG) e o anestesista José Quinan, representante do CRM de Goiás a participarem do evento para sensibilizar os médicos radicados no Tocantins. 

"Com isso, criamos três comissões para criar as três entidades médicas. Organizamos um grupo para criar o Sindicato dos Médicos, e eu fiquei responsável por isso, um grupo pra criar o CRM, o Fred [Frederico Henrique de Melo] ficou responsável por iss, e um grupo pra criar a Associação Médica, que ficou o Medrado [Eduardo Medrado], lá em Araguaína".

Ainda durante a luta pela criação do Estado do Tocantins, uma das ideias era que fosse um território federal. Neilton era da turma do contra. "A gente foi contra e fez inclusive um movimento grande 'Tocantins, estado sim, território não', lembra, ao citar que livros de presença e cartazes das greves, cartas abertas feitas, todos um material que ilustra a história da saúde e da política do Estado, ressalta o médico. 

"O estado do Tocantins é irmão gêmeo, trigêmeo, do Ministério Público e do SUS, criar o SUS dentro da Constituição foi uma luta da cidadania". 

 

Demissão em massa de médicos é uma das primeiras frentes de atuação sindical

 

Uma das primeiras medidas da direção eleita no SIMED-TO foi reunir uma pauta de demandas da categoria.

Por meio do Ofício circular 01/89, o presidente Neilton Araújo pedia informações dos pares dos problemas enfrentados pela classe médica para fundamentar a atuação sindical imediata da entidade. 

Os dados, afirmava ele, também subsidiariam a primeira audiência do SIMED-TO com o então governador do Estado José Wilson Siqueira Campos.  

Também avisava que a entidade realizaria, nos dias 24 e 25 de junho, em Porto Nacional, o “Seminário Política de Saúde – SUDS” com a presença de várias lideranças médicas regionais e nacionais.

Em maio daquele ano, sobreveio nova crise no Hospital da Osego, uma unidade mista de saúde, onde a equipe capitaneada pelos Manzanos havia estabelecido o trabalho seminal de medicina integral e comunitária. 

A crise incluiu demissões de médicos que impactou diretamente a atuação sindical. Um dos exonerados era o secretário geral do sindicato, Evando Queiroz, condição que, legalmente vedada essa exoneração.

“É grave a situação do hospital da “OSEGO” em Porto Nacional vocês devem ter visto nos jornais: sem condições, sem direção, sem pessoal suficiente, hoje tivemos notícias de demissão de três médicos, todos de 40hs semanais e o pior é que não há explicação de motivos, isso no momento que o serviço está necessitando de médicos e outros profissionais de saúde para funcionar”, registrou o presidente, em despacho aos colegas médicos.

O médico Evando de Queiroz atuante na unidade desde o dia 20 de abril de 1986 foi comunicado da demissão pela direção administrativa do hospital regional de Porto Nacional, à época nomeada por indicações políticas.

Além do secretário da entidade, Gilberto Hatano e Vera Lúcia Quirino, mais dois fundadores do SIMED-TO foram demitidos por ordem do secretário estadual de Saúde. Menos de um mês antes, outro fundador, Jaci Silvério de Oliveira, que fora nomeado diretor-geral da unidade, também havia recebido sua exoneração. A medida governamental também “devolvia” outros médicos atuantes para Goiás. 

Ao diretor administrativo, Antônio Mário da Silva, Evando escreve requerendo a data, motivos e responsável pela medida e cobra como e quando seriam atendidos os direitos trabalhistas, inclusive os salários atrasados. 

A mobilização sindical pautou discussão na Câmara dos Vereadores de Porto Nacional, na abertura dos trabalhos legislativos no mês, com a presença de vários médicos da unidade da Osego. 

Com o aval do então presidente, o vereador João Joaquim de Almeida (PDT), os médicos esclareceram suas posições diante das acusações da gestão estadual que levaram às demissões.  A principal delas era que os médicos “trabalhavam muito pouco num hospital daquele tamanho, só atendendo quinze fichas por dia”. 

Na sessão no Legislativo os médicos apresentaram relatórios de serviço comprovando atendimento real de mais de 4 mil consultas mensais e uma centena e meio de partos mensais, inclusive cesarianas.

Incluiu também correspondência à Justiça Estadual na qual propõem ao magistrado que os médicos da unidade registrassem o ponto diariamente em juízo, “até um encaminhamento satisfatório para a questão garantindo que aos doentes internados daremos a assistência necessária até sua total recuperação e alta hospitalar”.

Além disso, na carta à Justiça, relatam os problemas de escala de serviço médico, cujas falhas eram deixar o hospital sem a devida cobertura, proibir a reunião semanal dos profissionais para discutir casos clínicos e deixar o médico sem amparo durante o plantão. Além disso, o hospital deixou de ter diretor clínico ou técnico.

A Federação Nacional dos Médicos (FENAM) também foi mobilizada pelo sindicato, no primeiro ofício redigido pela diretoria naquele ano. 

 

O caso repercutiu na imprensa goiana, com matéria publicada pelo Jornal O Popular no dia 26 de maio de 1989, e no jornal local O Jacumã, mantido pela Comsaúde, em setembro de 1989. 

Entre outras frentes, o problema levou o Conselho Regional de Medicina de Goiás, à época ainda responsável por fiscalizar a prática da medicina no recém criado estado do Tocantins, a vistoriar o hospital 

A crise perdurou até o ano seguinte. Em ofício no dia 12 de setembro de 1990, assinado pelo corpo clínico do Hospital Regional de Porto Nacional, os médicos pedem a participação do SIMED-TO diante da “situação grave e emergencial em que se encontra o nosso hospital” para orientar como “proceder diante de tal situação nos respaldando de futuras acusações e responsabilidades que nos sejam dirigidas”.

“Entre muitas deficiências e falta de infraestrutura básica para o nosso bom desempenho profissional, estamos com um número reduzido de médicos nas áreas de clínica médica, pediatria, cirurgia e ortopedia; resultando no não preenchimento completo da escala mensal e consequentemente falta de assistência médica à população”, relatam no documento.

“É impossível continuarmos nos submetendo às precárias condições de trabalho, e sofrendo pressão de toda a população de Porto Nacional e municípios que buscam os nossos serviços diariamente, ameaçando-nos perante as autoridades competentes”.

Em resposta, o SIMED-TO afirmou em ofício, de 10 de outubro de 1990 considerar “de extrema importância uma solução para a situação crítica” em que se encontravam os colegas médicos e demais trabalhadores de saúde do hospital de Porto Nacional. O SIMED-TO e o CRM-TO criaram comissão do CRM-TO para vistoriar o Hospital Regional e analisar as condições de trabalho.

O desfecho da crise inclui a transferência de vários médicos, pela gestão estadual, para as mais distantes cidades do Estado. Aos poucos o serviço público na cidade, nos moldes em que era desenvolvido, foi sendo desmontado e desmobilizado, mas dali em diante, os médicos sabiam da existência e da atuação de sua entidade sindical.

 

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